domingo, 21 de maio de 2023

Por que "por que" e não "porque"?

Clique na imagem para ler.

O problema em questão é o uso do porquê. Muitos acham que quem inventou os quatro porquês não tinha mais nada para fazer. Isso quando não questionam a integridade da mamãe do inventor. Contudo, não cabe a nós questionar sua existência; devemos aprender seu uso e ponto-final.

Então, quais são os quatro cavaleiros do apocalipse que causam terror nos falantes do português? Porquê, porque, por quê, por que. Tentemos explicar seu uso, sucintamente. O primeiro é substantivo. Assim, vem, normalmente, acompanhado de adjunto adnominal (o mais comum é o artigo). Exemplo: Sei o porquê do erro.

O segundo indica uma causa ou uma explicação. Tem a função de conjunção. Exemplo: Ele foi bem no exame porque estudou.

O terceiro (escrito com acento e separado) é, com frequência, usado no final de uma pergunta — direta ou indireta. Exemplo: Não comprou aquele livro por quê? Ela foi reprovada sem saber por quê.

E o último é parecido com o terceiro. Usa-se em perguntas também (direta ou indireta), mas quando não estiver no final da frase. Exemplo: Por que não comprou aquele livro? Ela não sabia por que fora reprovada.

Já entendeu o erro do quadrinho? Não? Vejamos três dicas, então. Use a que você achar mais fácil.

1) “Por que” é usado quando estiver subentendido “o motivo”.

Eu nunca entendi por que (o motivo pelo qual) inventaram embalagens de batata frita com fecho.

Observemos que não indica uma causa ou uma explicação. Assim, “porque” no sentido de “pois” não cabe na frase acima.

2) Já ouviu falar que inglês é mais fácil? Neste caso, pode ser. O inglês pode facilitar nossa vida. Havendo apenas dois porquês (why [por que] e because [porque]), fica mais fácil entendermos qual porquê empregar no português se traduzirmos a frase.

I can’t understand why ou because? Se fizer sentido why, use “por que”. Caso contrário, use “porque”.

3) Você sabe o que é oração coordenada e subordinada? Orações coordenadas não dependem uma das outras, já as subordinadas estão tão intimamente ligadas que não podem viver separadas. Analisemos dois exemplos.

A) Eu nunca entendi porque você nunca explicou.
B) Eu nunca entendi por que fizeram isso.

O exemplo A contém duas orações coordenadas. A segunda explica o motivo de o sujeito não ter entendido. Elas são tão independentes que posso separá-las, sem grandes prejuízos. Eu nunca entendi. Você nunca explicou.

O exemplo B mostra uma oração principal (Eu nunca entendi) e uma subordinada (por que fizeram isso), que complementa o verbo entender. Observemos que o complemento de um verbo é chamado de objeto. Assim, a oração subordinada é objeto direto de entender. O que eu nunca entendi? A razão de eles terem feito isso. Portanto, empregando uma oração subordinada objetiva direta, a conjunção correta é por que.

Regência verbal de "lembrar"



A tirinha acima contém dois erros gramaticais. Clique nela para ler. O primeiro é muito comum, pois, na maioria das vezes, falamos assim, e as tirinhas, normalmente, tentam imitar nossa fala coloquial.

O verbo “lembrar” admite, basicamente, duas regências:
1) transitivo direto: lembrar alguma coisa — “Este discurso lembra o de Rui Barbosa.” (Otoniel Mota);
2) pronominal: lembrar-se de alguma coisa — Lembrou-se de comprar pão.
O fato é que, cotidiana e informalmente, dizemos “Lembrou de comprar pão”. Isto é, cortamos o pronome “se”. Contudo, tal construção coloquial não deve ser imitada nos textos em que devemos seguir a normal culta.
Deste modo, as frases em questão ficariam assim:
— Lembra-se do Cebolinha, o meu filho?
— Não se lembra da tia Anete?

O outro equívoco é com relação ao emprego do quê, que recebe acento quando for tônico, substantivo ou estiver no final de frases interrogativas. Assim, “O quê?” seria o correto.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Intertextualidade na Tradução

O ofício do tradutor pode ser comparado com o de um músico; e o original a ser traduzido, com uma partitura. Tomemos como exemplo a 5ª Sinfonia de Beethoven. Apesar de a partitura ser a mesma, existem inúmeras versões. Cada músico pode lê-la e interpretá-la de um modo diferente; às vezes, simplificando alguma parte, ou adaptando, mas certamente acrescentando sua marca, seu toque. Assim é o tradutor. Ao interpretar o original, ele deixa sua marca, ainda que invisível aos olhos do leitor comum. E um ponto extremamente importante para a interpretação do original e a posterior tradução é o tradutor saber empregar diversas linguagens de acordo com os personagens, situações, contextos e época. Para tanto, o tradutor, assim como o escritor, está sempre atento aos diálogos que o cercam: conversas de crianças, adolescentes, vizinhos, parentes, funcionários de uma empresa, executivos, criminosos, tudo acaba virando material de trabalho para que a tradução, sobretudo de diálogos, seja verossímil.

Nesse sentido, o tradutor também deve estar atento a intertextualidades, ou seja, quando um texto dialoga com outro, citando uma personagem ou até um trecho, muitas vezes conhecidos, outras vezes nem tanto. Sendo assim, a bagagem e experiência do tradutor são inestimáveis.


Diante dessa problemática, no ano passado, tive o prazer e o desafio de fazer a tradução para a dublagem do filme Last Call, que retrata os últimos dias do poeta Dylan Thomas, interpretado por Rhys Ifans, enquanto ele sonha e bebe até cair em coma alcoólico. A versão brasileira pelo estúdio UP Voice está disponível em alguns streamings.

Dylan Thomas é um poeta famoso que vai aos Estados Unidos fazer uma turnê. Sua fala é mais formal, típica dos poetas da década de 1940 e 1950. Inclusive em várias cenas, Thomas recita trechos de seus poemas. Então, como o leitor pode imaginar, foi um grande desafio traduzir essas cenas, visto que nem todos os seus poemas foram publicados aqui no Brasil. Mas isso é assunto para outro dia, voltemos à intertextualidade.

O filme o mostra entrando no bar de manhã para se embriagar. Ali ele conhece o barman Carlos, interpretado por Rodrigo Santoro. Cada dose que Dylan recebe é batizada com um substantivo que indica um momento da vida. Vejamos esta cena em que Thomas batiza a 12ª dose:



Thomas: Twelve, heh, 12, 12, 12 is sadness, which is the great shade that hovers behind us like a thief with a cudgel.

Carlos: What's gone and what's past help should be past grief.

Thomas: I'm not even going to ask, Carlos.

Carlos: What?


Num primeiro momento, poderíamos pensar que, por ser barman, Carlos é pouco afeito à literatura, e sua fala é mais informal e coloquial, como se ouve nos bares da cidade. Contudo, com o passar do filme, vemos que não é bem assim. Carlos também é poeta e adora ler. Desta forma, a fala “What's gone and what's past help should be past grief” nos deixa com uma pulga atrás da orelha e uma pergunta: como devemos traduzir? De modo mais coloquial ou mais formal? Por minha experiência, sempre dou ouvido a essa bendita pulga e investigo um pouco.

E qual foi a surpresa? Constatei que essa fala pertence a The Winter's Tale, de Shakespeare. Portanto, identificada a intertextualidade, devemos traduzir essa fala não como a de um barman talvez humilde e pouco instruído, mas, sim, como uma personagem de Shakespeare.

Portanto, a minha solução foi: O que passou e já não tem remédio, não devemos lastimar.