segunda-feira, 18 de julho de 2022

Intertextualidade na Tradução

O ofício do tradutor pode ser comparado com o de um músico; e o original a ser traduzido, com uma partitura. Tomemos como exemplo a 5ª Sinfonia de Beethoven. Apesar de a partitura ser a mesma, existem inúmeras versões. Cada músico pode lê-la e interpretá-la de um modo diferente; às vezes, simplificando alguma parte, ou adaptando, mas certamente acrescentando sua marca, seu toque. Assim é o tradutor. Ao interpretar o original, ele deixa sua marca, ainda que invisível aos olhos do leitor comum. E um ponto extremamente importante para a interpretação do original e a posterior tradução é o tradutor saber empregar diversas linguagens de acordo com os personagens, situações, contextos e época. Para tanto, o tradutor, assim como o escritor, está sempre atento aos diálogos que o cercam: conversas de crianças, adolescentes, vizinhos, parentes, funcionários de uma empresa, executivos, criminosos, tudo acaba virando material de trabalho para que a tradução, sobretudo de diálogos, seja verossímil.

Nesse sentido, o tradutor também deve estar atento a intertextualidades, ou seja, quando um texto dialoga com outro, citando uma personagem ou até um trecho, muitas vezes conhecidos, outras vezes nem tanto. Sendo assim, a bagagem e experiência do tradutor são inestimáveis.


Diante dessa problemática, no ano passado, tive o prazer e o desafio de fazer a tradução para a dublagem do filme Last Call, que retrata os últimos dias do poeta Dylan Thomas, interpretado por Rhys Ifans, enquanto ele sonha e bebe até cair em coma alcoólico. A versão brasileira pelo estúdio UP Voice está disponível em alguns streamings.

Dylan Thomas é um poeta famoso que vai aos Estados Unidos fazer uma turnê. Sua fala é mais formal, típica dos poetas da década de 1940 e 1950. Inclusive em várias cenas, Thomas recita trechos de seus poemas. Então, como o leitor pode imaginar, foi um grande desafio traduzir essas cenas, visto que nem todos os seus poemas foram publicados aqui no Brasil. Mas isso é assunto para outro dia, voltemos à intertextualidade.

O filme o mostra entrando no bar de manhã para se embriagar. Ali ele conhece o barman Carlos, interpretado por Rodrigo Santoro. Cada dose que Dylan recebe é batizada com um substantivo que indica um momento da vida. Vejamos esta cena em que Thomas batiza a 12ª dose:



Thomas: Twelve, heh, 12, 12, 12 is sadness, which is the great shade that hovers behind us like a thief with a cudgel.

Carlos: What's gone and what's past help should be past grief.

Thomas: I'm not even going to ask, Carlos.

Carlos: What?


Num primeiro momento, poderíamos pensar que, por ser barman, Carlos é pouco afeito à literatura, e sua fala é mais informal e coloquial, como se ouve nos bares da cidade. Contudo, com o passar do filme, vemos que não é bem assim. Carlos também é poeta e adora ler. Desta forma, a fala “What's gone and what's past help should be past grief” nos deixa com uma pulga atrás da orelha e uma pergunta: como devemos traduzir? De modo mais coloquial ou mais formal? Por minha experiência, sempre dou ouvido a essa bendita pulga e investigo um pouco.

E qual foi a surpresa? Constatei que essa fala pertence a The Winter's Tale, de Shakespeare. Portanto, identificada a intertextualidade, devemos traduzir essa fala não como a de um barman talvez humilde e pouco instruído, mas, sim, como uma personagem de Shakespeare.

Portanto, a minha solução foi: O que passou e já não tem remédio, não devemos lastimar.